SEMINÁRIO TEOLÓGICO BATISTA
RECENSÃO CRÍTICA
A missão na esteira do iluminismo – Cap. 9; páginas 320 a 415
“Missão transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão”
(David J. Bosch; tradução de Gerardo Korndörfer; Luís M. Sander – São Leopoldo,
RS: EST, Sinodal, 2002, 690páginas)
VITOR MANUEL RAMOS BISCAIA
Licenciatura em Teologia
Missões
Missão
transformadora: mudanças de paradigma na teologia da missão
Bosch, David J.; tradução de Gerardo Korndörfer; Luís M.
Sander
São Leopoldo, RS: EST, Sinodal, 2002, 690 pp.
Capítulo 9: A missão na esteira do iluminismo (páginas
320 a 415)
O capítulo 9 deste livro de David Bosh é uma continuação do capítulo anterior e dá seguimento à sua tentativa de reconstrução do paradigma missionário protestante. Bosh justifica a opção de tratar este assunto em dois capítulos separados por causa da necessidade de mostrar a profunda influência que o iluminismo exerceu sobre o protestantismo, tratando-a por isso em separado.
A estrutura deste capítulo é algo complexa embora perceptível. Divide-se em duas partes principais, a que se segue uma terceira mais em jeito de conclusão. Cada uma dessas duas partes principais subdivide-se em duas outras a que chamaremos secções. Na primeira parte o autor tenta destacar os aspectos principais do movimento iluminista que mais poderão contribuir para a compreensão do que estaria a acontecer no pensamento e prática missionários durante este período. Começa por discorrer sobre o que chama de “os contornos do paradigma iluminista” para na segunda secção do que consideramos ser esta primeira parte mostrar como cada um desses contornos (ou “características” como lhes chama nesta segunda secção) influenciou o cristianismo e a teologia cristã na sua vertente protestante. Na segunda parte tenta descrever como a “ideia missionária se desdobrou no protestantismo a partir do séc. XVIII”, começando por “identificar e delinear os eventos mais relevantes dessa época na medida em que afectaram a evolução da ideia missionária”. Na segunda secção desta segunda parte, descreve e examina o que considera serem os “principais impulsos e motivos que caracterizaram a missão protestante” durante este período. O capítulo conclui com uma terceira parte em que o autor, em jeito de resumo ou conclusão, define o que considera ser um perfil dos motivos missionários da era moderna, e estabelece a ponte para o capítulo seguinte (que se situa já na terceira parte do livro) em que vai abordar a emergência do que irá denominar como “paradigma pós-moderno”.
Ao discorrer sobre os contornos da cosmovisão iluminista, o autor parte da cosmologia medieval cuja estrutura apresenta num esquema bem simples (Deus ® Igreja ® Reis e nobres ® Povo ® Animais, plantas e objectos) para demonstrar como toda esta estrutura veio a ruir, primeiro com a Reforma que abala o segundo nível desta estrutura (a Igreja), assunto tratado no capítulo anterior, e depois, já na era do iluminismo, com a “Idade da Revolução” que abala o terceiro nível (Realeza) e a “Idade da Ciência” que abala o primeiro nível (Deus), assuntos estes abordados no presente capítulo. Daqui segue então para a tarefa de delinear esses contornos e depois para o impacto dos mesmos na compreensão da missão cristã.
São sete os contornos ou características do iluminismo que segundo Bosh interessam para esta compreensão. O primeiro é definido como a proeminência da razão (Idade da Razão) na compreensão do mundo, inquestionavelmente determinado pelos escritos de René Descartes mas também pelos seus contemporâneos e alguns antecessores, tanto das áreas da filosofia como das ciências naturais ou da física (Copérnico, Bacon, Galileu). O segundo trata da separação entre sujeito e objecto esquema que separa os seres humanos do seu ambiente e que permite que o sujeito (a razão humana) estude o seu objecto (o mundo não humano). O terceiro tem a ver com a introdução da casualidade directa como chave para compreender a realidade, ou seja, a ciência deixa de responder às perguntas “por quem?” e “para quê” e passa a ser totalmente determinista. O quarto é a crença do iluminismo no progresso que acabou manifestando-se sobretudo nos empreendimentos de desenvolvimento nos chamados países do terceiro mundo. O quinto foi a afirmação de que o conhecimento científico era factual, isento de valores e neutro. O sexto a convicção de que todos os problemas eram, em princípio, solucionáveis. Finalmente o sétimo que via os seres humanos como emancipados e autónomos, ou seja, o indivíduo torna-se importante e interessante como ser em si e não mais na sua relação com Deus e a igreja.
Os resultados destas características do iluminismo na fé cristã foram os seguintes. Quanto à primeira, a proeminência da razão, o resultado foi que a razão suplantou a fé como ponto de partida. Este antropocentrismo resultou numa ausência de lugar para Deus ao que a igreja e a teologia tiveram de responder, e o fizeram por pelo menos cinco caminhos diferentes: o do divórcio entre a religião e a razão, o da privatização da religião, o da declaração da teologia como uma ciência, o da tentativa de criação de uma “sociedade cristã” e, finalmente, o da adaptação à sociedade secular. Quanto à segunda, a separação entre sujeito e objecto, resultou numa nova abordagem dos textos bíblicos e as respostas foram, da parte da ortodoxia protestante, a ênfase na inerrância bíblica, a que se seguiu o pietismo (individualização da palavra) o idealismo (racionalização) e o liberalismo (relativização). A terceira, substituição do propósito pela casualidade directa, levou à substituição da confiança em Deus pelo planeamento humano. A quarta, a crença no progresso, resultou na crença de que, em breve, todo o mundo se converteria à fé cristã, ou em outros círculos, que o cristianismo seria capaz de reformar o mundo, erradicar a pobreza e de restaurar a justiça para todos. A quinta, distinção ente facto e valor, levou à dicotomia entre verdades e valores (verdades distintas não podem coexistir, mas valores diferentes podem), o que levou uns a elevarem a fé cristã à categoria dos factos e outros a aceitarem que as questões religiosas se ocupavam com valores. A sexta, de que todos os problemas eram em princípio solucionáveis, levou à exclusão dos milagres e, nas palavras de Bosch, “onde Deus ainda era usado como uma hipótese, tornava-se o “Deus das lacunas””. E a sétima, de que todas as pessoas eram indivíduos emancipados e autónomos, resultou num desmedido individualismo, marcante sobretudo no ramo protestante, tornando a igreja periférica.
Já na segunda parte, ao abordar a missão no espelho do iluminismo, menciona como eventos relevantes que afectaram a evolução da ideia missionária, em primeiro lugar, a relação modificada entre igreja e Estado. Embora a relação igreja estado não fosse mais a mesma depois da reforma, ela ainda assim permaneceu como igreja estatal, no entanto, no paradigma iluminista, essa aliança entre igreja e estado começou a ser cada vez mais contestada, sobretudo com a queda das monarquias e em particular com a Revolução Francesa. O resultado foi que o “secular” e o “religioso” passaram a seguir caminhos cada vez mais distintos. Esta separação foi especialmente notável no pietismo, apesar deste movimento ter, ao princípio, resistido ao avanço do racionalismo no continente europeu. Enquanto no continente o racionalismo adquiriu o predomínio nos círculos teológicos e eclesiásticos, na Inglaterra assistiu-se a uma espécie de matrimónio entre o racionalismo e o pietismo.
O segundo evento, ou melhor, conjunto de eventos, que Bosch denomina como Forças de renovação são o “Grande Despertar” nas colónias americanas, o “metodismo” e o “reavivamento evangélico” na igreja anglicana na Inglaterra. Embora o Grande Despertar tenha tido origem nas congregações reformadas holandesas, é de entre os presbiterianos que o movimento recebe a sua figura principal, Jonathan Edwards. A combinação entre Edwards com a sua sólida base teológica e o Despertar resultou na combinação de dois princípios que estabeleceram o equilíbrio que restaurou o dinamismo na igreja cristã; “sabiam que a Escritura sem a experiência era vazia, e a experiência sem a escritura, cega”. Nessa base teológica, destaque para a escatologia de Edwards que embora pós-milenista, possuía uma centelha de excitação uma vez que acreditava que o Despertar anunciava realmente o princípio dos últimos dias. Ainda digno de nota no movimento é a mudança de uma ênfase na soberania de Deus para um ênfase na graça de Deus. Ainda assim o Despertar não deu origem directamente a actividades missionárias embora tenha assentado os seus fundamentos. Ao mesmo tempo na Inglaterra John e Charles Wesley que mais tarde se juntam a Geoge Whitefield organizam encontros de reavivamento e acabam dando origem ao metodismo. Neste movimento é ainda mais evidente a influência do iluminismo. Os metodistas não viam diferença efectiva ente cristão nominais e pagãos e por isso não distinguiam entre missão “no próprio país” e “no exterior” (“o mundo é a minha paróquia”, John Wesley). A Igreja Anglicana acaba sendo afectada também pelo reavivamento metodista dando início ao Reavivamento Evangélico que se estendeu também às outras igrejas.
O terceiro evento que o autor denomina como O Segundo Despertar, acontece após o declínio do primeiro Despertar na América logo a seguir à revolução Americana. O que caracteriza este segundo Despertar é exactamente o novo ânimo que gerou no espírito missionário, tornando a causa missionária na grande paixão das igrejas americanas. Na Inglaterra o resultado foi muito semelhante, e tanto aqui como na América uma das consequências mias significativas foi a fundação de sociedades dedicadas especificamente à missão no exterior. É nesta altura que surge William Carey cujo slogan “Esperem grandes coisas de Deus, tentem grandes coisas por Deus” reflecte bem a influência do iluminismo que ajudara a colocar o mundo todo ao alcance do evangelho. Já no continente europeu, o espírito iluminista conseguiu frustrar qualquer renovação eclesiástica comparável ao que aconteceu na Inglaterra e na América, sobrando apenas uma breve influência na Holanda e resquícios do pietismo na Alemanha confinado a pequenos grupos bastante dispersos. São estas pessoas, tocadas pelos Despertares, os “evangelicais”, assumidamente não conformistas que se compadecem das pessoas expostas a condições degradantes enquanto as igrejas “oficiais” se mostram, em geral, indiferentes. Com uma ênfase soteriológica prioritária, foi este movimento que, comparativamente à maior parte do cristianismo ocidental, representou uma oposição razoavelmente eficaz ou mesmo uma alternativa em alguns aspectos, à mentalidade iluminista.
Os eventos seguintes são agrupados por Bosch em séculos. O século 19 ao princípio ainda sob a influência do segundo Despertar, vê uma parcela considerável da religião cheia de vida petrificar-se em “códigos morais inânimes” característica da época vitoriana. Na América do Norte a posição teológica pós-milenista ainda garante algum fôlego de optimismo, mas a Guerra Civil alteraria tudo isso gerando vários ramos a partir do evangelicalismo clássico que no início do séc. XX evoluiriam para o evangelho social de um lado e para o fundamentalismo do outro. Gradualmente os teólogos “oficiais” abandonam os aspectos dramaticamente sobrenaturais da concepção pós-milenista da história deixando de acreditar que as pessoas intocadas pelo evangelho fossem directamente para o inferno, e pensando cada vez mais “que a missão ultramarina das igrejas americanas consistia em compartilhar os benefícios da civilização e do estilo de vida americano com os povos destituídos do mundo”.
O século 20 vê concluir-se a transição do pós-milenismo reformado para o Evangelho Social. O pecado é identificado com a ignorância, e supõe-se que o conhecimento e a compaixão resultariam numa “melhoria social à medida que as pessoas concretizassem as suas potencialidades”. Há contudo um ramo do protestantismo americano que retém os elementos sobrenaturais da fé cristã e se volta progressivamente para o pré-milenismo, em grande parte como resultado da desilusão originada pela Guerra Civil. Só o retorno de Cristo poderia modificar a situação de forma radical e permanente. O evangelismo constituía a prioridade máxima, e cada vez mais as pessoas voltavam as costas a praticamente todo o tipo de envolvimento social. Este é o sector da igreja cristã que conseguiu resistir aos assaltos do iluminismo durante mais tempo do que o protestantismo europeu.
Bosch discorre a seguir sobre aqueles que foram os principais motivos missionários na era iluminista mostrando até que ponto esses motivos foram influenciados pela mentalidade iluminista, dando maior destaque ao mundo de fala inglesa porque a partir do séc. XIX foi o mundo anglosaxónico que mais missionários não católicos forneceu e também porque foi esta a região mais pesquisada e portanto que disponibiliza mais material de estudo. Os motivos mencionados são a glória de Deus; o constrangimento do amor de Jesus; a transigência do evangelho com a cultura; a missão e o destino manifesto; a missão e o colonialismo; a missão e o milénio; o voluntariado; o fervor missionário; optimismo e pragmatismo; e finalmente o motivo bíblico. Para um resumo das ideias de Bosch sobre cada um destes motivos ver a recensão da colega Adriana.
O autor termina este capítulo com a elaboração de um perfil dos motivos missionários da era moderna que vale a pena resumir. “Como todos os seres humanos eram criaturas da razão, uma antropologia muito optimista substituiu a concepção sombria da humanidade que predominou no catolicismo medieval e na era da Reforma protestante. “A dicotomia entre sujeito e objecto significou que, de modos reconhecidamente bem distintos, a Bíblia e, de facto, a fé cristã em si fossem objectivadas. “A eliminação do propósito implicava que o sucesso do empreendimento missionário estava afiançado contanto que se conseguisse criar as condições apropriadas. “A crença fundamental do iluminismo na certeza da vitória do progresso” pode ser comprovada na “quase inconteste confiança na capacidade dos cristãos ocidentais de oferecer uma panacéia aos males do mundo e de assegurar progresso a todas as pessoas – através da difusão ou do “conhecimento” ou do “evangelho”. “A distinção entre factos e valores significava que missionários cristãos tentaram, de duas maneiras radicalmente diferentes, defender a natureza “científica” do seu empreendimento. “Até certo ponto, a crença de que, em princípio, tudo podia ser solucionado já está na origem do surgimento das agências missionárias baseadas no voluntariado no final do séc. XVIII e também é responsável pelo extraordinário aumento do optimismo um século mais tarde. A doutrina de que os indivíduos deveriam ser livres, emancipados e autónomos significava que, implícita ou explicitamente (pelo menos no protestantismo), Deus e os seres humanos eram vistos como rivais”.
Em conclusão podemos dizer que nos encontramos perante um capítulo denso e complexo, aliás como toda a obra, que exige pré-requisitos a nível histórico, filosófico e teológico para uma cabal compreensão, mas que nos ajuda a, sem dúvida, compreender o que está atrás e por detrás do nosso evangelicalismo actual. Primeiro porque as influências do iluminismo ainda hoje se fazem sentir, sobretudo em Portugal onde chegaram bem mais tardiamente, segundo porque nos ajuda a entender as reacções que o mesmo já manifesta em relação a essas influências.